terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Uma vaca no ombro

Tatuei a vaca no braço esquerdo, quase no ombro. Uma vaca azul, vestida de ninja, plácida que se destaca com azul turquesa, esmeradamente registrada em minha pele branca como as ilustrações que se faziam em couros de cabras, da Antigüidade até a Idade Média... Até o Renascimento, senão me engano, até o Renascimento italiano, quando o impressor Aldo Manuzio inventou o livro moderno, o livro com margens, sem as iluminuras, o livro preto no branco, letra no papel, times new roman, no máximo itálico e um bold... Sem graça... Não... A graça sendo outra, é claro...

Enxergando

Uma vez o Guilherme, meu filho, ainda aos cinco anos, me perguntou por que eu não tinha televisão em casa e por que eu gostava desses livros, que graça tinham os livros sem desenho, sem ilustrações coloridas... Inquiria-me, lindo, rodeado por eles em minha desordenada biblioteca, a carinha por cima do meu peito, olhinhos que ainda não decifravam essas “minhoquinhas pretas” retorcidas na pele branca do papel... Então, lhe disse: nesses livros, o desenho a gente faz aqui dentro, e apontei sua cabeça de cabelos crespos de anjinho... Quer ver? E contei-lhe um pouco do que estava se passando na história que eu lia. Estás enxergando os desenhos? E ele: Estou... Aprendeu, assim, a imaginar, ou melhor, a ver, intencionalmente, a própria imaginação, o que significa, admirar, olhar de fora: filosofar...

Rimbauds falsos

E agora eu tatuo a vaca no braço, milhares de quilômetros longe dele, eu tatuo a vaca de quando tudo começou... Tudo começou... Que tudo? Tudo começou, quando... A Vaca Azul é Ninja foi meu primeiro livro, meu primeiro escrito com alguma pretensão literária, depois de dezenas de cadernos jogados fora, todos os anos, jogados no lixo a cada final de ano com seus bichos que não se mexiam, com suas idéias moles, corriqueiras e inconsistentes de um Rimbaud em espírito, mas não em carne, neurônio e os nervos necessários ara uma temporada no inferno... Um Rimbaud mal-traduzido, como um quadro falso... As traduções são como quadros falsos, copiados, diz Shopenhauer... Como eu, 17, 18 anos, aquele Rimbaud falso, que havia decorado um carcomido Rimbaud, deformado a não dar mais de visto tão de longe, aqui debaixo, lá debaixo, não sei onde, lá do Sul...

Mapas sureados

É que o Sul que sempre me pareceu embaixo, até hoje, tenho essa sensação, somente abalada uma única vez, quando vi, na Inglaterra, em Greenwich, no Museu Naval, um mapa sureado, como se diz em espanhol, um mapa não norteado, mas, como me explicou um professor de geografia na Espanha, tendo o sul como norte... Então o globo ficava de cabeça para baixo, estranhamente, com Meca quase ao centro... Ah, sim, era por isso, os árabes, ou pelo menos os que viviam na Espanha, em Córdoba, Sevilha etc, punham Meca no centro de seus mapas, o sul em cima e o norte embaixo...
Eu disse pela primeira vez, mas não é verdade, pois é claro que a primeira vez que vi um mapa desses foi em Porto Alegre. Foi no Fórum Social Mundial, num tempo em que tentávamos colocar as coisas de pernas para o ar, em longas marchas pela Borges de Medeiros. Era o tempo da Davos quente, do contrapoder global simbolizado por um globo de cabeça para baixo. Um globo em que a parte pobre do planeta subia e a rica descia... Logo depois, aparecia o logo do Fórum em que não há nem norte nem sul e todos os continentes aparecem em uma mesma linha... Talvez depois seja possível voltar a falar disso, depois de Belém 2009... Estaremos lá. Eu, Cecília, Guilherme e a Vaca Azul é Ninja.

Londres, um dia

No momento eu falava da vaca que eu tatuava no braço, feita vagarosamente já há mais de uma hora por um amigo tatuador que trabalha em Edimburgo, na Escócia, no norte, a bela Edimburgo, onde estive uma vez com a Ana Paula, minha então namorada, depois de duas semanas na linda Londres, na feia Londres, a única grande cidade que conheço para a qual não tenho nenhuma vontade de voltar... Mais ou menos 15 dias são o suficiente para Londres; anos não dão conta de uma Paris, Berlim, Roma ou Amsterdan. Mas, falava de Edimburgo, com seu castelo no meio da cidade, no alto de um monte, em cuja frente, há uma engraçada placa de bronze encimada pela cabeça de um veado. Bebíamos e ríamos, em casa... Meu amigo tatuava a vaca e falávamos de Edimburgo, da cidade úmida e cinza, medieval e impressionante.

- A terra de Stevenson...

De Robert Loius Stevenson, do querido autor de A Ilha do Tesouro, de meu Virgílio a me conduzir, pela primeira vez, pelo inferno e o paraíso da literatura, ele a quem devo a liberdade fictícia, mágica e ilusória, que me ajudou a ver a possibiliade de fugir do prosaísmo do mundo...
A prosa de Stevenson, o cheiro do café - lembra Borges... Eu continuo dentro do navio em que entrei, pela primeira vez, para me safar do Sul, frio e pobre, o falso Rimbaud do Sul, cópia malfeita do arquétipo do mundo das idéias. Cópia malfeita, esboço torto do poeta, que não deu em nada, a não ser a salvação daquelas horas, dias e anos, dentro de uma roupa de poeta, de um cabelo de poeta, botas de poeta capaz de encantar muito mais a si próprio do que a quem quer que fosse, ao redor...

Cópias erradas

A mentira que se tornaria verdade mais adiante, não na figura do poeta, mas do adulto curtido nessa literatura falsa, embebido no simulacro mal-traduzido, cuja distância do original pode até ter feito bem. No final, que distância proveitosa! Que distância útil, que solidão transformadora de um homem comum num verdadeiro poeta de mentira... Perse, Auden, Eliot... Útil, é claro, fazer-me de mim mesmo, deste modo... A cópia de cópias erradas. Mas, afinal, é só erro é que produz. Só o erro, só a compreensão errada é que é produtiva. A compreensão de algo dito ou escrito é contrário exato da criação. O que compreende, não cria. A criação é produto do engano...

Em minha pele pelas calçadas da Asa Norte

Enganei-me imitando e criei A Vaca Azul é Ninja, essa, essa mesma, que doloridamente se cravava em meu braço, perto do ombro, pra sempre, ou até que este corpo exista antes de voltar para a terra, de onde veio, de se enfiar mole num buraco da Terra, como um verme da Terra a girar no corpo dela pelo espaço, tal como no lindo poema do Wordsworth (que no original talvez tenha outra força)...

Eu queria ser Rimbaud e escrevi a vaca, ria, olhando para sua cara maravilhosa já uma realidade no meu corpo. Eu, o autor, emprestando um pedaço de meu corpo para que a vaca passasse a ter, também ela, um. Da costela de Adão, ou coisa parecida, a costela gorda da vaca ganhando concreção... Sairia do livro, o desenho da Chica, da Francisca Braga, que toca guitarra na Danm Laser Vampires, para as ruas de Brasília etc...