domingo, 17 de janeiro de 2010

Cidades Criativas de Periferia no FSM 2010

O debate cultural e, principalmente, o das Cidades Criativas de Periferia – que estamos lançando nesta edição descentralizada do FSM – terá atividades marcantes no Fórum Social Mundial 10 Anos – Grande Porto Alegre. Da Capital gaúcha a Sapiranga, passando por Novo Hamburgo e São Leopoldo, eventos de relevância internacional ocorrerão na linha do Trensurb. Essa mesma linha que diariamente leva 170 mil trabalhadores para as fábricas da região receberá nos cinco dias do Fórum a Casa Cuba e a Reunião Pública Mundial de Cultura em São Leopoldo; uma extensa grade no Acampamento Intercontinental da Juventude em Novo Hamburgo; discussões sobre cultura no Fórum das Autoridades Locais de Periferia em Canoas, e muitas outras iniciativas em maiores ou menores dimensões. Em Canoas, teremos, entre as mais de 230 atividades auto-organizadas da cidade, dezenas relacionadas com o tema da cultura, principalmente no recorte “cultura de rua”, “cultura de periferia”, “cultura livre” ou “independente”.
Em meu entendimento, trata-se, de um resultado concreto do "paradigma da política cultural", em curso no Brasil desde 2003. A partir desse paradigma, a cultura não é mais vista apenas em um eixo, vertical (estético, das belas artes) ou horizontal (ético, democratizador). Ultrapassou-se esta perspectiva binária, cartesiana e simplificadora. Complexificou-se a idéia de cultura, vendo-a com seus desdobramentos em três eixos: cultura como direito de cidadania, cultura como economia e cultura como valor simbólico, criativo. A partir dessa tridimensionalidade, os eixos horizontal e vertical se complementam em vez de se excluírem.

Um problema é que, a duras penas, este paradigma se espalha pelo Brasil e ainda está heterogeneamente distribuído no território nacional. Há mais tempo desenvolvido em algumas capitais, o referido paradigma não é uma realidade na totalidade dos estados brasileiros, muito menos nas cidades periféricas, sejam elas as das regiões metropolitanas ou do interior dos estados.

Apesar disso, em distintos pontos do mapa do Brasil, a cultura começa a ser vista como "coisa séria", para muito além do entretenimento, do ornamento fútil ou do elemento ostentatório. E com a diretriz da descentralização das políticas culturais em voga, agora também as periferias do Brasil inteiro começam a saber que cultura é, na verdade, um poderoso instrumento de qualificação do ambiente social. Cultura gera instrumentos fundamentais para a transformação, pois amplia o leque de repertórios, gera coesão/oportunidades/sentido/portas de saída/agregação e espírito crítico. E isso, para as populações e territórios de periferia, historicamente à margem no que se refere à plena garantia de seus direitos sociais, ambientais e culturais, ganha proporções ainda mais sérias e urgentes. Acesso a bens e serviços culturais é tão necessário quanto o acesso à saúde e educação. Apenas as populações não demandam tanto por cultura nas periferias como nas capitais, porque nesses territórios foi menos desenvolvida (via política cultural) a consciência dos direitos culturais. Expresso em nossa Constituição, a garantia de tais direitos é dever do Estado desde 1988.

Mas aos poucos essa realidade vai se modificando nas periferias, por meio da ação de secretarias de cultura comprometidas com as transformações. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, já podemos contabilizar ótimos exemplos, tanto locais como na excelente articulação regional que possibilitou a criação, em 2009, da Rede de Dirigentes Culturais da RM de Porto Alegre. Com certeza um dos grandes resultados dessa ação em rede é a força que a cultura obteve na programação do FSM em nossas cidades. No caso de Canoas, em cinco meses de intenso trabalho entre governo e sociedade, emergiram na programação do FSM a visão dos jovens das periferias e suas práticas culturais. Foi assim que ganhou, de vez, a programação do FSM em Canoas o tema da cultura de periferia.

Ampliação do capital cultural

O processo de construção da grade de atividades do FSM nos ensinou muitas coisas. Quero destacar alguns elementos que brotaram das dezenas de reuniões desde o intenso inverno gaúcho de 2009 até o início de janeiro de 2010.

- A ampliação das possibilidades de fruição e expressão simbólicas das camadas mais à margem na sociedadade é vista pelos artistas de Canoas como condição para a transformação das realidades de violência e de falta de perspectivas nas quais estão mergulhados - mas, diferentemente de outros nas mesma condição, não de maneira passiva. Agem contra essas realidades. E com criatividade.

- Por meio da ampliação de seu capital simbólico e cultural, vão transformando suas vidas e as vidas de suas comunidades. Na área da leitura, dez bibliotecas comunitárias nos bairros são exemplo vivo dessas ações exemplares e que se complementam com dezenas de grupos de capoeira e de hip-hop e as mais de 100 bandas de rock da cidade. A articulação entre elas é vista por eles como uma necessidade urgente e de grande valia para o desenvolvimento cultural do município.

- A consciência de sua condição vem a esses grupos por meio da ampliação de seu repertórios e visão de mundo. E é isso o que eles querem também para seus pares. É nesse ponto que o eixo estético, vertical, das sensibilidades e criatividades individuais, toca o ético: o eixo horizontal, coletivo, dos costumes a serem modificados. Assim é que bandas independentes se organizam, tocam, gravam seus próprios cds (já estão na quarta coletânea), disponibilizam na rede, realizam suas festas de lançamento e discutem cultura livre. Formam uma rede de ação solidária, participativa, que tem servido de modelo a coletivos de outras regiões do Estado.

- O recente desenvolvimento da política cultural na cidade (nossa secretaria tema penas um ano) é visto como elemento fundamental para gerar a consciência de que a cultura é direito de cidadania e que não pode ficar restrita (como direito) aos bairros ricos da cidade nem aos bairros ricos das capitais, onde se acumulam os equipamentos culturais e os recursos financeiros.

- A universalização do acesso é pauta fundamental para a geração de uma sociedade mais livre, criativa e socialmente justa.

- Queremos desenvolver, de maneira participativa, o modelo das cidades criativas também nas periferias das grandes cidades (e do interior dos estados) e sair da condição de populações relegadas ao papel de mão de obra barata para o trabalho pesado da geração de bens.

A emergência das periferias
Formadas na virada do Brasil agrário para urbano/industrial dos 1960 para os 70, com o desenvolvimentismo capitalista brasileiro de então, as cidades das RM têm a marca do trabalho duro na indústria (frequentemente metalúrgica) e os escassos tempos para a fruição e expressão culturais. Além do trabalho duro, essas populações precisam ser atendidas em seus direitos cotidianos à dimensão simbólica, estética, afetiva – e não apenas ao seu arremedo via indústria do entretenimento massivo e comercial, onde se faz o achatamento e a mercantilização das sensibilidades e das criatividades.

Não somos Toronto, nem Berlim, nem Barcelona, as chamadas “cidades criativas”. Mas Canoas, São Leopoldo, Guarulhos, Getafe, Nanterre, Banfield. E tantas outras que se encontrarão em Canoas de 26 a 28 no Seminário Metrópoles Solidárias de Periferia, da rede Falp. Também criativos, quando se se dá conta da riqueza das produções dessas localidades (e que poderão ser conferidas no Fórum Social Mundial 2010 Grande Porto Alegre.

A emergência das periferias se dará em um Fórum que tem a cara das periferias, pois é o primeiro que acontece para além de uma capital de estado ou de país, como são os casos das historicamente combativas Porto Alegre, Mumbai, Caracas, Nairóbi e Belém. Agora, também Canoas, Gravataí, Sapucaia do Sul, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Sapiranga, Santa Maria e muitas outras entram no mapa altermundista, no mapa do contrapoder global, como cidades que produzem alternativas para a construção de um mundo melhor. Pois nessas cidades também existem – e muitas – ações cidadãs em rede, economia solidária, democracia participativa, geração de bens públicos. E cultura livre.

Aqui, em Canoas, teremos durante o FSM, uma mostra de como as distintas linguagens artísticas podem se desenvolver tanto no eixo vertical, estético, quanto no horizontal e empoderador, com os Pontos de Cultura, o Rock Social Mundial, o Hip-hop Sem Fronteiras, a Rede Sul-Brasileira de Teatro de Rua, com 15 espetáculos em toda a cidade, o Espaço Interplanetário de Cultura Livre, o Seminário Litero-ativismo: Leitura para um outro mundo possível, a Mesa Culturas Indígenas, a Mesa Cidades Criativas e Solidárias de Periferia e o lançamento do edital nacional de Hip-Hop, pelo Ministério da Cultura, além de dezenas de outras discussões e ações culturais que ocorrerão de 25 a 29 no Parque Esportivo Eduardo Gomes e no Centro Universitário La Salle. Sem falar nos shows maiores que, desta vez, ocorrerão em Canoas, no PEG, com Tom Zé, Mutantes, Chico César, GOG, Nação Zumbi, Racionais Mcs, Daniel Drexler e muitos outros. Esperamos a todos em nossa cidade, cidade de periferia integrante do Território Social Mundial.