Quando, no final da Idade Média, os leitores se deram conta de que podiam ler em silêncio, teve muita gente que não gostou. Os padres, por exemplo, temerosos de que não pudessem mais controlar o que os estudantes estavam lendo, chegaram a proibir a estranha prática.
Enxergavam nela um potencial subversivo. Até então, as bibliotecas, segundo conta o escritor argentino Alberto Manguel, em seu famoso "Uma História da Leitura", eram alguns dos lugares mais barulhentos do mundo. Afinal, como as palavras eram vistas desde a antigüidade como representações gráficas de sons, os leitores as reproduziam em voz alta na hora de ler. De repente, se deram conta de que podiam fazer a mesma coisa bem quietinhos. E calaram. A barulheira que o leitor ouve, ao decodificar os sinais, passou para dentro do cérebro e o mundo viu nascer um sujeito silencioso que podia gritar e bradar o que quisesse, em silêncio. Pois esta velha prática, a decodificação silenciosa de 25 símbolos, sofre uma decadência desde o século passado, substituída pela (ou tendo que conviver com a) audiência da televisão e do rádio, do cinema e do computador. E de certa maneira, a leitura hoje voltou a ser como na Idade Média: menos íntima (ensimesmamento) e mais barulhenta (alteração horizontal, diria Ortega y Gasset). Como, num mundo multimeios, um meio de que não podemos prescindir é a leitura - como diz Renato Janine Ribeiro - precisamos estar atentos para este fato da cultura atual.
Hoje, quando mais se precisa dela (a leitura ensimesmada, transformadora, cultural, para além da funcional), num mundo muito mais complexo que antes, este tipo de leitura vem perdendo seu espaço.
Ora, dirão, mas não há mais leitores, hoje? Sim, as pesquisas mostram (especialmente a Retratos da Leitura no Brasil - Instituto Pró-livro, 2008) que há mais leitores hoje que talvez em toda a história do Brasil. Mas também mostram que esses leitores têm em geral uma relação instrumental com a leitura. Leem com respeito a fins, obrigados, não por um hábito cultural. Leem o que o mercado dita que deva ser lido, via poderio da propaganda. E quando saem da escola, deixam de ler.
A leitura funcional (utilitária, pragmática) se consolida e avança, para que os consumidores possam utilizá-las nos manuais, para operarem máquinas na indústria e no coméricio, para utilizarem PCs e mensagens de telefone. Há alguns anos, estive no Quênia e me disseram que os celulares com SMS não se desenvolviam no país devido ao altíssimo índice de analfabetismo. Seria preciso que aprendessem a ler. E de fato, lá (como aqui?) as escolas vinham cumprindo cada vez mais este papel para o mercado, ensinando aos africanos a ler funcionalmente (com conteúdo técnico-instrumental), mas não funcionalmente (com conteúdo crítico, vital). Por diversas e profundas causas, a começar pelos interesses de manter um povo em uma dimensão pré-crítica (como aqui, desde que os acordo MEC-USAID extirparam do currículo todo conteúdo crítico-artístico-filosófico-sociológico, na militarizada década de 60), muito dificilmente conseguem desenvolver a leitura para além do domínio rudimentar de códigos necessários para a "inclusão na modernidade", eufemismo para fazer parte do "mercado de consumo".
No Brasil, a partir dos anos 60, diminui, na escola sem dimensão crítica, a possibilidade de formação da leitura cultural. Ante a sociedade de consumo desenfreado e extrativista dos bens da natureza, nosso principal instrumento para sua superação vai sendo minguado à força de acordos e sofre para reagir (mesmo individualmente) aos valores da sociedade, dominada ideologicamente (pelas armas, antes, e pelo mercado, depois). Nascido no mesmo ambiente, o poderio dos grandes grupos de comunicação orienta cada vez mais para o consumo desenfreado dos produtos impostos "democraticamente" pela hegemonia de uma estética de massa e seu barulhento fordismo cultural, a fragmentação e tecnização da educação (fatiada e transformada em ensino) para servir ao modo de produção. Achata-se assim a possibilidade de desenvolvimento deste velho hábito silencioso humanista.
Peça de resistência, a leitura ressalta como ponto arquimédico e praticamente único lugar onde o sujeito do século XXI pode se apoiar, resistir e defender valores solidários contra a estridência arrogante ao redor. “Não sondamos ainda as potencialidades sinistras do cinema e do alto-falante”, alertava I. A. Richards em "Princípios de Crítica Literária", em 1924. Vislumbrava os efeitos nefastos que eles poderiam causar ao hábito silencioso. Estão aí. Os sujeitos dos países pobres só têm na ampliação de seus repertórios e de suas possibilidades de ação no mundo uma saída para resistir a uma indústria da cultura que berra o que quer, com a força de quem pode chegar a todos os cantos do mundo.
Além disso, depois do período do Estado à força, com o seu esfarelamento nas décadas subsequentes, a escola ruiu com ele. Mesmo dentro da escola, resta aos estudantes, infelizmente, quase que a aposta na educação pessoal, autodidata, possibilitada pela leitura. E é com ela que se poderá fazer alguma frente à transformação da cultura em um entretenimento fácil, que na verdade é a mercantilização do ócio dos trabalhadores: negócio, negação do ócio. Assim, o leitor se auto-educa, não por um capricho autonomista, mas porque, de fato, no meio do deserto, encontra pouco remédio.
Entre as populações pobres, ao menos, não parece haver outra solução do que ampliar seus horizontes pela leitura cultural. “Tá dominado, tá tudo dominado”, cantavam nos morros do Rio de Janeiro. A barbárie impera onde os últimos tijolos do Estado foram roubados (pelos que estavam dentro do Estado). A escola (e a sociedade) fracassa e meninos e meninas arrogantes enchem as salas enfumados de vaidade, brandindo espadas vitoriosas e pisoteando ideais inertes. Heterônomo, com valores feitos de fora, pelos meios de entretenimento, o homem-massa domina com a violência de seus gestos e gostos. Liga a tevê no mais alto volume. Passeia com jornais repletos de sangue pobre, futebol e mulheres nuas. Impulso de vida e impulso de morte, equilíbrio e harmonia de tensões que antes faziam parte da arte, decifradas em silêncio pelos leitores, e que hoje rastejam nas calçadas barulhentas do mundo real. E isso não por uma questão de democratização, mas da demagógica dominação ideológica dos meios de entretenimento (sem dimensão cultural há muito os jornais não oferecem nada além da leitura funcional, desde sua página de polícia, passando pelo esporte, a cultura - chamada convenientemente de variedades - até a política. A própria crítica deixou as páginas dos jornais e revistas para as aduladoras resenhas de propaganda das novidades literárias, musicais e audiovisuais). O século XX desmontou os critérios da arte. O mercado agradece e dita, ele mesmo, o que é bom e mau, o certo e o errado.
Mas o jogo nunca está perdido se estamos falando de seres humanos.
Pois apesar das circunstâncias, do barulho, o sujeito é sempre um espaço de liberdade para além delas, um espaço onde pode estar em silêncio. E pensar. Ou não é sujeito, mas objeto, determinado a responder mecanicamente a certos impulsos, na base do grito. O pragmatismo utilitarista golpeia o sujeito-leitor (leitor do mundo, animal hermenêutico), soterra-o embaixo de uma série de pesadas condicionantes, materiais, morais, legais, intelectuais. “O homem pobre não é livre”, dizia o filósofo gaúcho Gerd Bornheim, vive apertado em suas circunstâncias, quase paralisado, mas mesmo assim exerce alguma liberdade. Ou não é humano.
Sempre lhe restará uma saída, ou um livro (daí a necessidade de amplas políticas de acesso a livros, com bibliotecas centros culturais). E é nessa esperança, nessa fé ao ser humano, que reside a confiança em que ele pode encontrar uma solução libertadora. Posso pôr tudo em dúvida, mas não posso duvidar de que estou duvidando, dizia René Descartes, demonstrando em sua época um sujeito para além das causas-efeito do mundo. Este sujeito sucumbiu junto com a modernidade, destroçado pelas pesadas evidências ao seu redor. Em seu lugar ficou um sujeito determinado pelas circunstâncias, quase a ponto de ser um animal meramente mecânico.
Ortega não vai a este extremo e, em sua famosa frase “eu sou eu e minha circunstância”, mostra um sujeito que já não é o racionalista, nem o vitalista, mas um terceiro que é os dois juntos. O eu-circunstância é liberdade, é poder-ser outra coisa, é autodeterminação em maior ou menor grau, mas mesmo assim autodeterminação. Seguimos duvidando de tudo, como Descartes, mas a dúvida hiperbólica tranca no único ponto indubitável: o homem é, muitas vezes, um animal surpreendente.
Reside aí, neste único ponto seguro, a fundamentação de uma argumentação em favor da leitura como espaço de ação e a esperança na capacidade de reação, insubmissão, resistência e sabotagem leitora.
Por mais que o pragmatismo siga destruindo tudo ao seu redor, quando chega ao sujeito há uma parte dele que está fora do sistema, que não é circunstância, mas sujeito, um eu-com-as-circunstâncias (diria Ortega). É sua capacidade de fazer outra coisa apesar do que o meio condiciona. É a partir deste espaço de silêncio, que ele pode ler, que pode interpretar, que é livre.
No leitor-sujeito (leitor-vital, em contraposição ao leitor-massa, funcional), uma parte está para além do mundo barulhento; inalcançável, portanto, ao pragmatismo-capitalista. Não pode ser alcançado, pelo fato de que é sujeito, de que sua intencionalidade está voltada para outro mundo: o texto. O consumo de massa não precisa de sujeitos autônomos, precisa de sujeitos heterônomos. As editoras mais comerciais não necessitam de leitores-sujeitos, mas sim de leitores-massa, de consumidores de idéias superficiais veiculadas no suporte livro, como se fosse literatura. Mesmo assim, os leitores-sujeitos resistem e mesmo que só um restasse já seria suficiente para fazer toda a grande máquina girar ao contrário. Por quê? Porque o ser humano é lógos (palavra que quer dizer muitas coisas bonitas como ligação, razão e palavra) o mundo tem jeito, que o diga a indignação silenciosa que corre o mundo em diferentes direções pela internet, livros e revistas. Pois os litero-ativistas ligam-se a este movimento chamando a atenção para a realidade de milhões de pessoas cuja única saída contra o barulho ensurdecedor do medieval homem-massa tem sido a abertura de um livro, numa revolução pessoal e em silêncio.
Os leitores não têm mais Estado, não têm família (de leitores), não têm escola. Resta a intimidade, o eu-circunstância, como reduto de liberdade, onde, ademais de todas as circunstâncias, os homens e mulheres podem ser chamados a fazer as coisas de outro modo, por uma pecinha que têm dentro de si, chamada, desde que nos conhecemos por gente, de razão (razão vital).
Integram um exército de inconformados e realizam, cada vez mais, ações bem menos silenciosas. De todo o modo, são elas também ações de silenciosas redes de resistentes. Conectam-se e distribuem informações que não circulam pelos meios tradicionais, através de novas revistas e livros e de listas de discussão que correm o mundo no mais subversivo silêncio. A mesma subversão que compartimos neste momento. Psiu!
Daí o caráter revolucionário de nossa ação, sua real possibilidade de mudar o mundo, começando pelo que está mais ao nosso alcance: nós mesmos. O leitor é, concretamente, um campo de batalhas onde o pragmatismo utilitarista pode ser vencido e onde as mudanças podem começar já, terminada a mais nova leitura. É isso o que vem acontecendo hoje em todo o mundo quando mais um de nós acaba de ler algo novo. Nosso movimento é silencioso. É o de passar para trás, com calma, a página já lida.
Um comentário:
Ler e escrever transformam o mundo...parabéns Jeferson! Um grande abraço
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