domingo, 25 de abril de 2010

Yuri F. Rodriguez, escritor caído

Yuri F. Rodriguez foi um tipo de escritor caído, espetáculo anacrônico do romantismo tardio e que desaparece, pra sempre, sem deixar sementes - só as gotas espalhadas pela terra cheia de areia e pedras, de um pampa deserto. Culminou, com seu esgotamento, um caminho. E por quê? Bom, é o que todos sabem: a cada dia que passa, nós sabemos que eles, os escritores, são mais ridículos, cada vez mais farsantes, à medida que o mundo anda, em sua correria, não digo dando as costas às suas já mirradas ejaculações - para evitar uma imagem excessivamente sexual – mas num nem-aí, que faz do dasein um pouco mais que um porra-louca das florestas encantadas da Alemanha.
“O ser-aí é só o nem-aí, na verdade, Astronauta. Não existe mais qualquer seriedade neste mundo” – Yuri reclamava - “E Heidegger, Sartre, Ortega e Unamuno são pura e simplesmente uns imbecis. A verdade é o riso do entrevistado antes de levantar da poltrona para cantar mais um hit no playback estimulando o auditório com palmas acima da cabeça. Um click na tevê e lá no outro canal tem uma família feliz no novo carro espaçoso. Mais um e aparece a apresentadora de tevê comentando o lançamento de um magnífico antirrugas. E se desliga a tevê fica ainda aquela sensação, a vertigem da velocidade que esparrama por cima de tudo o creme da impessoalidade, fragmentada, perturbadora, infértil, impossibilitando qualquer leitura mais demorada, mais atenta, qualquer mínima exigência, Astronauta”.
Por que Yuri Rodriguez foi, assim como eles, tão imbecil? Por que foi um merda? Por que não calou a boca, como todo mundo e, assim, continuaria vivo? Porque não dava. Ele fez o caminho contrário. Não correu pra lá, pra onde todos foram em gritinhos animados, mas pra cá, pra dentro, mesmo, cavando, mudo, com as próprias unhas, até chegar no fundo frio do poço escuro de si mesmo, onde caiu. E sem ter como voltar. Ali, só tinha a sua escrita, a que se achava com algum poder para contrapor-se ao universo de balbúrdias, a que se quis abolidora da cor local, a que tentava instalar a romântica petulância do gris sobre o inferno das cores da América do Sul. Em vão.
Tentou fazer o mesmo com a linguagem. Escrever para além dela, tendo que contar com ela, mas não sem a relutante consciência de que a linguagem seja, talvez, a única inimiga da literatura, e que só com a construção de uma espécie de clareira em sua natural opacidade é que se consegue enxergar o que são as coisas – ingênua petulância, a mais doce de todas a vivida por Yuri, assassinado por este mundo de porcos. Ele construiu lentes para melhor enxergar isso tudo e se opôs à farsa dos adornos desnecessários e infrutíferos, na busca das pequenas e únicas verdades. Quem quereria alguma coisa com isso?
Obviamente que há outros imbecis como Yuri. Também eles nasceram em lugares um tanto improváveis, em ambientes pouco propícios para o cultivo da literatura, como é o caso do Pampa. A úmida e sonora amazônia brasileira e colombiana, as grandes metrópoles invisíveis como São Paulo ou Belo Horizonte, a mais que vista Nova York, os frios e desertos altiplanos da Bolívia, os quentes e superpopulosos desertos mexicanos, o alegre joga-as-mãozinhas-pra-cima-bate-na-palma-da-mão do litoral brasileiro, as infinitas ondas do mar encrespado e pétreo da cordilheira dos Andes, os arredores barrentos e escuros da Europa do Leste, a inatingível estepe sul-africana, habitada por leões, por guepardos e obviamente por escritores. E até mesmo a Austrália, tão imprópria para a literatura por suas promessas sempre renovadas de novas aventuras.
E tantos já tinham morrido antes dele, tantos já hoje são apenas fotos de escritores brasileiros, chineses, argentinos, árabes, japoneses, penduradas em livrarias e cafés em Buenos Aires e São Francisco, em Pequim ou Rio de Janeiro, santos de uma religião já quase extinta, como bem queria o genial Thomas Bernardt, também morto.
Gente como Yuri, cujas idéias serão fósseis desencavados por cientistas e uma pequena porção de leitores amantes de um passado recente e, talvez por isso mesmo, até mais passado do que o mais distante, da ingrata humanidade. Deles, mais nada sobra, a não ser pequenas e privadas lembranças de cada vez menos leitores sem força alguma para se impor a um mundo que soterra a todos com a frieza anestésica de sua realidade, aterradora para a delicadeza das palavras.
O que Yuri fez foi muito mais que a louca revolução pessoal contra esta violência. Ao catar, na multidão, com paciência de garimpeiro, aqueles exemplares, para um acerto de contas estético, a faxina espiritual necessária, a violência reparadora de que este planeta tanto necessitou, ele não fez mais do que a única coisa possível via literatura: a negação do mundo. Para isso, teve, evidentemente, um método. Não bateu ao acaso, tal qual um desesperado lutador de rua como pode parecer ao observador desavisado. Foram ações de cirurgião e que tiveram como fim não a violência, mas esta o meio para a educação impossível da multidão de almas errantes de seu inferno pessoal. Esse é que foi seu único erro, evidentemente: acreditar que seria possível.
Nos últimos anos, já quase não escrevia mais. A última notícia sobre um livro seu – uma nota sem qualquer repercussão na Zero Hora - já tinha mais de quatro anos. Mesmo com o pequeno sucesso alcançado tempos atrás, o que com certeza o enterrará e fará de seu apartamento mais um dos pontos turísticos literários da nossa capital, ao lado do caminho de tantos grandes escritores. Foi assim, pobre desse jeito, em Buenos Aires, com a Plazoleta Cortázar ou sua imagem, como um santo desenhado na estação de Banfield. Ou com a rua Jorge Luiz Borges e o centro cultural que leva seu nome.
Foi um abandono da ética. Foi uma desistência do real. Foi a negação da objetividade, que seguiram-se ao fracasso do caminho que ele escolheu. Certamente que já estava mais para cá do que pra lá, mas na noite que se foi, ele completou a queda e se estatelou na terra dura do fundo. Lá dentro, ria soluçante um fantasma. Não o do simples escritor, mas o do escritor megalomaníaco, o idiota que quis colocar os pingos nos is, para restituir, com sua arte, uma racionalidade perdida, talvez pra sempre.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

50 anos do Exu Monumental

Há 50 anos, completados dia 21 de abril, inaugurava-se Brasília, cidade-monumento pousada - a altíssimo custo - no Planalto Central do País. Um ponto eqüidistante, pelo menos no imaginário brasileiro, de confluência de culturas, desde as desenvolvidas nas grandes cidades da costa superurbanizada, até as sertanejas, sulistas, amazônicas, pantaneiras... A menos brasileira das cidades do Brasil – alheia à e alienada da realidade que a cerca - a mais brasileira de todas, com tudo, de bem e de mal, de um imenso país diverso e desigual.

Cidade-parque, cidade-obra de arte, cidade-bolha, cidade medieval de pontes elevadiças que a cada noite fecha seus portões já sem os moradores das cidades satélites que de dia são sua parte humana visível, a atender nas portarias dos edifícios modernistas, amplos, belos, cheios de vazios e de silêncios emudecedores. Mas ela não é boa. Ela não é má. Ela é só o resultado de um feitiço, um saravá racionalmente planejado e executado quase que nos mínimos detalhes.

Há pouco mais de 50 anos, um fotógrafo captou de cima de um teco-teco o cruzamento de dois cortes abrindo o vermelho da terra onde antes era vegetação do Cerrado. Preto & branco, a foto clássica captou uma cruz, leste-oeste-norte-sul, mas como ficou enviesada pela posição do avião, resultou em um imenso “x”. Vi esta foto várias vezes na Secretaria de Cultura do DF. É o risco dos tratores no local em que o místico Dom Bosco teria visto, séculos atrás, uma cidade suntuosa, a nova capital que JK resolveu concretizar a custo do suor e do sangue dos mais pobres: um milagre. Este eixo monumental o jornalista TT Catalão chamou certa vez, de maneira muito espirituosa, de “Exu Monumental”.

Um Exu, na grande encruzilhada nacional, encruzilhada das encruzilhadas que é Brasília, cruzamento do urbano e do rural; do nacional e o universal; das culturas populares e eruditas; dos saberes tradicionais e as novas tecnologias; das culturas negra, indígena e branca mesclando-se em um caldeirão de idéias e vivências dos brasileiros com o Brasil... Antropofágico. Acolhedor. Voraz.

Exu não é deus. Exu não é o diabo. É apenas um mensageiro entre os seres humanos e os orixás. Espécie de Mercúrio das religiões afro-brasileiras. Quando oferecemos algo aos céus (ou infernos, pouco importa, já que, Exu, nietszcheanamente, está além do bem ou de mal), colocamos as oferendas nas encruzilhadas, nos encontros das ruas.

Mal-comparando, é mais ou menos isso o que se passa com a capital do Brasil. Para esta encruzilhada, levamos o que temos de melhor – um povo fantástico, arquitetos e artistas miraculosos, uma variadíssima cultura, sonhadores, místicos, batalhadores – e o que temos de pior – os violentos e pesados frutos da política dinossáurica e do parasitismo brasileiros. Está tudo lá, na esquina.

Aos 50 anos, Brasília é hoje a capital de um país que se mostra cada vez mais gigante, repleto de uma cultura híbrida, diversa, reconhecida no mundo todo como um de seus principais ativos. Uma nação que tem sabido amalgamar diferenças e fazer novidades brasileiras, com criatividade e sensibilidade. Apesar de tudo.

Uma pena que se trate muitas vezes de um Brasil praticamente desconhecido por nós, gaúchos, mergulhados, não individualmente, mas em escala social, ainda no paradigma da identidade (à força dos meios de comunicação e entretenimento, e do atrasismo conservador que tão bem manipulam e ganham dinheiro a explorar certo sentimento de purismo cultural, tão falso quanto perigoso). Daqui, não-raro as lentes distorcem com o preconceito e a desinformação a imagem de um Brasil fantástico.

E, assim, corremos o risco de perder a perspectiva do pertencimento, a perspectiva do Sul como contribuição generosa, em vez de diferença egoísta, o que, afinal, não tem nada a ver conosco, apesar da versão estereotipada vendida daqui mesmo para o resto do Brasil.

Diversidade não anula a identidade. Mostra-a como contribuição, como parte de um todo diverso no qual estamos com nossas especificidades: o estado, o país, o mundo, o universo (unimúltiplo). Tal sentimento talvez seja mais fácil de ser compreendido na capital do Brasil, lugar cuja identidade é a diversidade, não-lugar e lugar de todos. É a capital de um país de culturas de fronteira, antropofágicas, também ele uma encruzilhada, um x a ser decifrado, a todo o tempo nos exigindo a paciência do olhar mais atento que o das explicações binárias - simplistas mas nunca inocentes.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Comunes.org

Um em mundo de constante tentativa de supressão das ações coletivas em nome de uma idéia falsa de liberdade - algemada a valores econômicos - a iniciativa Comunes.org, espanhola, é oxigênio. Gente bacana que trata de fazer seu conhecimento circular com liberdade. Não a abstrata liberdade, à qual só acedem os que tem dinheiro (a maioria, aqueles que já nasceram com). Enfim, os comunes inventaram uma forma muito bacana de ajudar projetos colaborativos a se desenvolver. Aplicam conceitos do mundo dos softwares livres ao mundo real. No Lavapiés, colorido bairro de imigrantes de Madri, Vicente Jurado, hacktivista basco-andaluz-madrileño, faz, junto com amigos de diversas partes do mundo, uma quieta revolução. Confira: http://comunes.org/pt.