quinta-feira, 22 de abril de 2010

50 anos do Exu Monumental

Há 50 anos, completados dia 21 de abril, inaugurava-se Brasília, cidade-monumento pousada - a altíssimo custo - no Planalto Central do País. Um ponto eqüidistante, pelo menos no imaginário brasileiro, de confluência de culturas, desde as desenvolvidas nas grandes cidades da costa superurbanizada, até as sertanejas, sulistas, amazônicas, pantaneiras... A menos brasileira das cidades do Brasil – alheia à e alienada da realidade que a cerca - a mais brasileira de todas, com tudo, de bem e de mal, de um imenso país diverso e desigual.

Cidade-parque, cidade-obra de arte, cidade-bolha, cidade medieval de pontes elevadiças que a cada noite fecha seus portões já sem os moradores das cidades satélites que de dia são sua parte humana visível, a atender nas portarias dos edifícios modernistas, amplos, belos, cheios de vazios e de silêncios emudecedores. Mas ela não é boa. Ela não é má. Ela é só o resultado de um feitiço, um saravá racionalmente planejado e executado quase que nos mínimos detalhes.

Há pouco mais de 50 anos, um fotógrafo captou de cima de um teco-teco o cruzamento de dois cortes abrindo o vermelho da terra onde antes era vegetação do Cerrado. Preto & branco, a foto clássica captou uma cruz, leste-oeste-norte-sul, mas como ficou enviesada pela posição do avião, resultou em um imenso “x”. Vi esta foto várias vezes na Secretaria de Cultura do DF. É o risco dos tratores no local em que o místico Dom Bosco teria visto, séculos atrás, uma cidade suntuosa, a nova capital que JK resolveu concretizar a custo do suor e do sangue dos mais pobres: um milagre. Este eixo monumental o jornalista TT Catalão chamou certa vez, de maneira muito espirituosa, de “Exu Monumental”.

Um Exu, na grande encruzilhada nacional, encruzilhada das encruzilhadas que é Brasília, cruzamento do urbano e do rural; do nacional e o universal; das culturas populares e eruditas; dos saberes tradicionais e as novas tecnologias; das culturas negra, indígena e branca mesclando-se em um caldeirão de idéias e vivências dos brasileiros com o Brasil... Antropofágico. Acolhedor. Voraz.

Exu não é deus. Exu não é o diabo. É apenas um mensageiro entre os seres humanos e os orixás. Espécie de Mercúrio das religiões afro-brasileiras. Quando oferecemos algo aos céus (ou infernos, pouco importa, já que, Exu, nietszcheanamente, está além do bem ou de mal), colocamos as oferendas nas encruzilhadas, nos encontros das ruas.

Mal-comparando, é mais ou menos isso o que se passa com a capital do Brasil. Para esta encruzilhada, levamos o que temos de melhor – um povo fantástico, arquitetos e artistas miraculosos, uma variadíssima cultura, sonhadores, místicos, batalhadores – e o que temos de pior – os violentos e pesados frutos da política dinossáurica e do parasitismo brasileiros. Está tudo lá, na esquina.

Aos 50 anos, Brasília é hoje a capital de um país que se mostra cada vez mais gigante, repleto de uma cultura híbrida, diversa, reconhecida no mundo todo como um de seus principais ativos. Uma nação que tem sabido amalgamar diferenças e fazer novidades brasileiras, com criatividade e sensibilidade. Apesar de tudo.

Uma pena que se trate muitas vezes de um Brasil praticamente desconhecido por nós, gaúchos, mergulhados, não individualmente, mas em escala social, ainda no paradigma da identidade (à força dos meios de comunicação e entretenimento, e do atrasismo conservador que tão bem manipulam e ganham dinheiro a explorar certo sentimento de purismo cultural, tão falso quanto perigoso). Daqui, não-raro as lentes distorcem com o preconceito e a desinformação a imagem de um Brasil fantástico.

E, assim, corremos o risco de perder a perspectiva do pertencimento, a perspectiva do Sul como contribuição generosa, em vez de diferença egoísta, o que, afinal, não tem nada a ver conosco, apesar da versão estereotipada vendida daqui mesmo para o resto do Brasil.

Diversidade não anula a identidade. Mostra-a como contribuição, como parte de um todo diverso no qual estamos com nossas especificidades: o estado, o país, o mundo, o universo (unimúltiplo). Tal sentimento talvez seja mais fácil de ser compreendido na capital do Brasil, lugar cuja identidade é a diversidade, não-lugar e lugar de todos. É a capital de um país de culturas de fronteira, antropofágicas, também ele uma encruzilhada, um x a ser decifrado, a todo o tempo nos exigindo a paciência do olhar mais atento que o das explicações binárias - simplistas mas nunca inocentes.

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