segunda-feira, 14 de junho de 2010

Cirila de laranja, 1974

Em 1974, com minha mãe e meu irmão, comecei minha vida nômade, fisicamente me movendo pela Bola da Terra. Tinha quatro anos então, e saímos de Santa Maria para morar em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Quando o sino bateu e o trem deixou a maior estação do Estado, ninguém de nós tinha a menor idéia: na verdade, éramos levados não pelo trem, exatamente, mas pela industrialização pela qual passava o militarizado País daquela época.
Os vagões iam lotado de gente com suas esperanças de vida melhor. E, nesta corrida do aço, levas e levas de mulheres com lenços na cabeça e homens com malas de couro e crianças no colo desciam na estação Canoas, bairro Mato Grande, para trabalhar nas metalúrgicas. E não era só para a frente que o trem andava; ao mesmo tempo, a cada estação que passava deslocava para trás na plataforma milhares de outros. Entre os pobres, eram os mais doentes ou os que não podiam por um ou outro problema sair da vida rural. As cidades do campo, todas elas diminuíram. Boca do Monte, a nosa, murchou.
Em poucos anos, hordas de retirantes formigavam os entornos das capitais de todo o Brasil, em condições muito piores do que as vividas antes. Em dez anos todas as capitais brasileiras já estariam irremediavelmente transformadas. Em 20, eram já zonas de barbárie e subúrbios violentos. A circunstânca nos levou a nos estabelecermos numa casinha alugada, numa rua sem asfalto à beira do valão. A 15 km da Cidade Sorriso, como então chamavam Porto Alegre.



Percorremos 350 km em 12 arrastadas horas de trem. Os bancos eram de madeira, duros e frios, mas podiam ser virados um de frente para o outro, formando uma espécie de cabana entre os encostos. Minha mãe nos colocava ali embaixo, em cima de um cobertor, para brincar com homenzinhos de plástico e dormir, se conseguíssemos. Era impossível, por puro entusiasmo com tudo aquilo ao redor: cores e sons magníficos nunca vistos antes, como um cinema tridimensional de 180 graus.
Ainda por cima, o trem balançava divertidamente para os lados e parava e arrancava de 20 em 20 minutos. Era impossível descansar de tanta coisa boa.
Meninos com bacias tapadas por panos de prato ofereciam nas janelas, que os braços esticados trocavam por notas de cruzeiros. De vez em quando minha mãe aceitava um daqueles chamamentos e os trazia para nós, em dois pedaços, a barriga estribuchada da massa de um pastel. Mas nada muito forte: meu irmão tinha lábio leporino; eu, uma quase incurável infecção intestinal.
Meu pai tinha ido na frente e, ao conseguir emprego como ajudante de metalúrgico, enfim também nós atiramo-nos no chamado êxodo rural, com os poucos móveis no vagão de cargas. Lembro do quepe e do uniforme do fiscal picotando os bilhetes escorado nos bancos. Não esqueço o gosto da Cirilinha, o refrigerante de laranja de Santa Maria, que tomei enquanto os xis gigantes das estruturas de uma ponte de ferro passavam pelas janelas abertas.

2 comentários:

vivianne disse...

Jeférson,

Teu texto me levou a uma imagem de infância. Também de uma viagem de trem. Mas, no sentido oposto. De Porto Alegre a Santana do Livramento. Uma garotinha de seis anos,também deslumbrada com todas as gentes e cores, e o movimento do trem. A mesma ímagem, apenas sem Cirila,a lembrança gravada e, até então perdida em um cantinho da memória, a ponte de ferro. Obrigada por me fazer relembrar.

Unknown disse...

Minhas lembradas do mesmo trem. Só que de Rosário do Sul para Porto Alegre!!!!