domingo, 22 de maio de 2011

Sobre a queda do prestígio do livro

Em "O livro e a Invenção da Modernidade", Claudius Bezerra Gomes Waddington aborda o tema O livro como lugar de resistência do pensamento, no qual afirma que, assim como passamos, hoje, por uma revisão do pensamento moderno, o principal instrumento da modernidade, o livro, está enfrentando idêntica crise. Para Waddington, nas últimas décadas...

"(...) a ascendência político-social e cultural do livro” passou por uma rarefação, perdendo, junto com o intelectual, a sua ‘aura’, o que pode ser notado em como esses têm dado seu lugar aos chamados “formadores de opinião.

Conforme Waddington, com a perda da aura do intelectual (ou do filósofo, construtor de conceitos), os formadores de opinião (de doxa) tomaram conta do lugar do livro e do intelectual. Junto com esses primeiros, os meios de comunicação mais modernos passaram a ter mais lugar no imaginário popular que o livro, ligado a outro sujeito social, o intelectual, em decadência. No entanto, como os interesses das grandes corporações, e entre elas, os conglomerados de comunicação, se fixam não pelo conhecimento, a episteme, mas pela opinião, a doxa, ou seja, por meio da propaganda e da comunicação, certas correntes de pensamento mais próximos à produção de doxa que de episteme - ou seja, mais otimistas com relação a esses meios, e não com o livro e o intelectual - acabam ganhando mais espaço social, no mercado, na universidade e, num círculo vicioso, nos próprios meios de comunicação. Obviamente que, nesse contexto, os pensadores do chamado pós-modernismo, mais afeitos à opinião que ao conhecimento, ganham mais espaço na mídia e na escolas, em detrimento da modernidade. Diz Waddington:

"A cena tardo moderna não reconhece mais as credenciais dos intelectuais para diagnosticar as mazelas da civilização, nem para fazer a prospecção das mutações sociais. A não ser que eles sustentem discursos que corroborem os interesses das megacorporações financeiras, de capital volátil e sem pátria e que não questionem a injustiça social embutida no processo de globalização."

Junto com o questionamento da modernidade, questiona-se também seu principal instrumento: o livro.

"Cumpre indagar se este fenômeno não estaria igualmente contaminado pelo descrédito em que caiu o edifício de verdades, laboriosamente erigido pela metafísica ocidental, e de que o livro foi o incansável arauto e o intrépido paladino. O espectro da crise que corrói os modelos clássicos de pensamento projeta-se sobre o livro. Talvez, a queda de prestígio do livro corresponda à busca de uma abertura do pensamento, enquanto novas modalidades de exercício crítico e de reformulação do conhecimento são experimentados. A insustentável asfixia do ambiente acadêmico a que conduziu a excessiva especialização dos campos do saber, não poderia perdurar por muito tempo. Enquanto soçobram os sistemas fechados de pensamento e o relativismo avança, a civilização do livro é chamada a depor. Ela é intimada a declarar as causas que abraçou e as alianças que selou. Desde a aurora da modernidade, a secularização foi sustentada pela civilização do livro como condição para a liberdade, ao mesmo tempo em que a aliança com as elites intelectuais imprimiu-lhe uma inflexão paternalista utópica da qual ela jamais logrou se desvencilhar. Agora que a baixa modernidade lança um severo olhar de desconfiança sobre os grandes valores da modernidade plena, o livro surge destituído de seus poderes insurrecionários. Talvez agora, despido das ilusões em que se viu envolto por tantos anos, ele consiga levar a cabo a tarefa de emancipação que é sua por opção, direito e vocação. Emancipação que a renascença desencadeou e que o iluminismo resgatou e reformulou de forma mais consistente. O projeto emancipador do livro persiste confirmando sua função de resistência à unidimensionalização da existência."

Waddington esquadrinha nestas passagens algumas das mais importantes questões que se põem na atualidade sobre o tema formação de uma sociedade leitora. A seguir, pontuo algumas delas:

1. O debate sobre políticas de leitura passa pelo embate teórico entre modernidade e pós-modernidade, o qual, em nosso entendimento, precisa ser superado, a partir de uma reforma do conceito de razão, como propunha Ortega com sua idéia de Razão Vital.

2. As teorias pós-modernas, que não questionam o atual estágio da globalização econômica, garantem seu espaço na mídia, na medida em que suas teorias em geral ou fazem um elogio a esses meios ou simplesmente naturalizam a tecnologia e o capitalismo.

3. A queda do prestígio das verdades da modernidade afetou também o livro, seu principal instrumento.

4. A forma de se recolocar a importância do livro como instrumento fundamental para a emancipação é livrando-o das ilusões racionalistas da modernidade, articulando-o com o vital. Nem vitalismo, nem racionalismo: raciovitalismo.

5. A asfixia do ambiente acadêmico decorre, como já diagnosticou Ortega, da especialização dos saberes.

6. O livro é um instrumento imprescindível para resistir à unidimensionalização da existência, ou seja, para resistir ao que Ortega chama de existência inautêntica, a do homem-massa.

2 comentários:

Igor disse...

Jéferson, tenho minhas dúvidas quanto ao protagonismo do livro. Acho que o livro nâo é sujeito, portanto nem está ao lado da metafísica, nem contra a pós-modernidade. Aliás, não podemos esquecer que esta última, em suas diversas nuances, foi engendrada nos e pelos livros... Menos (ou mais) que sujeito, o livro é uma arena, um campo de batalha. Mesmo os formadores de opinião procuram se legitimar no espaço do livro. O livro autoriza o autor, seja ele deus ou o diabo. A grande luta, hoje, é manter a legitimidade dessa arena, ou seja, a garantia de um espaço público de debate menos volúvel e portanto mais propício às vozes responsáveis, qualificadas.

Um abraço aqui do cerrado!

Acco disse...

Eita, o Igor já disse umas coisas que queria dizer sobre o "livro em abstrato" x "livro como campo de batalha" e como foram bem ditas não preciso insistir.
Os livros considerados sagrados pelas religiões, por exemplo, continuam super influentes, atravessando a pré, a própria e a pós modernidade. Enquanto isso, outras formas assemelhadas de registrar o duradouro e o consistente estão sendo inventadas, o que é bom. Sem parecer ser uma prece, "não creio na dissolução do livro, na sua perda de prestígio, mas em sua metamorfose".
Sim, é bem verdade que as verdades estão com sérios problemas para se firmarem em nossos dias. Mas não é por isso que o livro perde espaço, já que se pode publicar tantos livros sobre coisas tão menos complicadas e mais fúteis e mesmo úteis que Verdades!
"A cena tardo moderna não reconhece mais as credenciais dos intelectuais para diagnosticar as mazelas da civilização, nem para fazer a prospecção das mutações sociais." ... Será? Pano prá manga. Eu particularmente não acredito nisso, e entendo que a "cena tardo moderna" (gostei dessa) vive(u) um "terremoto" (não achei expressão melhor) nas ideias e nos cânones aceitos como sistemas de ideias dominantes ou hegemônicos, combinado com a impressionante expansão/ proliferação de vozes, conteúdos e formas de apresentação e acesso a conteúdos, que tornou mais difíceis as sínteses, a identificação das referências, o estabelecimento das verdades. Sim, mais difícil, mas não menos importantes, ou impossível.

"A asfixia do ambiente acadêmico decorre, como já diagnosticou Ortega, da especialização dos saberes." E de otras cositas más, incluindo sistemas "meritocráticos" que induzem a proliferação infindável de artigos publicados e não lidos em conceituadas revistas, além de preguiça, burrice, falta de ousadia, apequenamento intelectual, acomodação e muchas otras cositas más nos tais meios acadêmicos. Tá certo, vão me fuzilar, mas...

Bem, mas o que eu gostaria de saber mesmo é o que vc entende por raciovitalismo (nem vitalismo, nem racionalismo!). Aceitei o convite, então me conta um pouco mais.