segunda-feira, 26 de maio de 2008

A antropofagia orteguiana 1

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883 - 1955) está bem mais próximo dos brasileiros do que em geral nos damos conta - e não só por sua grande influência na filosofia latino-americana na primeira metade do século XX. O que nos aproxima é, além de um grande número de temas em comum, o espírito antropofágico de seu pensamento. A antropofagia, ele exercitou desde muito cedo em duas estadas na Alemanha para deglutição do idealismo alemão e da cultura européia que ele considerava fazer falta na Espanha de seu tempo. Avidamente, devorou Nietzsche, o neokantismo, o pensamento de Husserl, Dilthey e tantos outros, que transpôs para a península ibérica (e para a América Latina, em artigos de jornal e em conferências realizadas em duas longas viagens), a fim de salvar essas circunstâncias, tão carentes não só de filosofia, stricto sensu, como de pensar com instrumentos intelectuais mais próprios uma série de problemas locais. No lugar das arbitrariedades e subjetividades comuns na Espanha e América Latina daquela época, o esforço pela técnica e objetividade, no entanto evitando o culto positivista. Racional e vital, ao mesmo tempo: raciovital, numa razão não “importada” da Europa, mas subordinada à vida, circunstância radical.
Essa antropofagia foi a marca do jovem Ortega na comparação com a geração imediatamente anterior à dele, cujo grande nome é o de Miguel de Unamuno. Fome que D. Miguel condenou no jovem impetuoso - cujo europeísmo lhe parecia modista e papagaiador de idéias alheias. Ortega levou anos de embate público com seu mestre para explicar seu “europeísmo” e enfim convencer os leitores espanhóis que sua proposta de europeização da Espanha era o único caminho a uma sociedade praticamente pré-moderna. Não por nada, desde então ele já era considerado pelos de sua geração como o filósofo espanhol capaz de deglutir, sem preconceito - tampouco subserviência - o que vinha de fora e mais do que transformar-se naquilo que digeria, como é intenção do canibalismo, assimilar para dar características espanholas a uma leitura da Europa: a chamada Europa vista da Espanha.

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