segunda-feira, 26 de maio de 2008

A antropofagia orteguiana 2

Essa assimilação produtiva conserva muitos pontos de contato com a antropofagia brasileira dos anos 20. Jovens burgueses iam à Europa (tal como o burguês Ortega) estudar e deglutir o velho mundo, com avidez semelhante à do madrilenho... A diferença é que, enquanto nossos modernistas comiam o que pudessem do futurismo de Marinetti, do dadaísmo de Tristan Tzara, do surrealismo de André Breton, Ortega dissolvia em seu estômago, naquele início de sua atividade filosófica, o neokantismo de Marburgo, que logo aplicaria (para em seguida também abandoná-lo em busca de sua própria filosofia, o Raciovitalismo)... Era o começo de uma faminta perspectiva do conhecimento que, no final das contas, se transformaria em um caldeirão transbordante de temperos bastante ecléticos, no mínimo saboroso.
Para Henrique de Lima Vaz, em O pensamento filosófico no Brasil de hoje, vivemos uma cultura de assimilação (assim como a da filosofia na Espanha). A filosofia no Brasil coloca numa grande panela um sem-número de idéias de fora para fazer nosso próprio cozido. Nessa assimilação do que vem de longe, o Raciovitalismo de Ortega, ainda conforme Lima Vaz, foi a filosofia que mais espaço teve entre nós no início do século XX. Como relata o filósofo brasileiro: “Já foi com razão notado que o raciovitalismo caminha para ocupar na cultura latino-americana um posto comparável ao do positivismo em fins do século passado. Também entre nós as idéias orteguianas penetram em círculos cada vez mais vastos da cultura” (in Franca, Leonel. Noções de História da Filosofia, RJ. Agir, 1987. p.355).
Foi a que mais influência exerceu na América Latina, logo após o positivismo e de certa maneira como resposta ao positivismo. Os brasileiros que se interessavam por filosofia naquela época também assimilaram muito da fonte orteguiana. Fonte que secou pouco depois de que chegava ao País a Filosofia acadêmica, propriamente dita, e nossos interesses intelectuais voltavam-se, quase que exclusivamente, para a França, a Alemanha e o mundo de língua inglesa. Como diz Hélio Jaguaribe, muito do desconhecimento de sua obra pode ser explicado por Ortega ter se recusado a viver num desses grandes centros intelectuais. Desse modo, a Espanha tirou de seu filósofo o prestígio que outros lugares emprestaram e seguem emprestando a pensadores (na opinião de Jaguaribe) menores que o espanhol embora bem mais conhecidos. Caso de Sartre.
Ortega é certamente um filósofo ainda bastante útil para se pensar uma imensa gama de problemas, especialmente os vividos pela sociedade brasileira. Muito provavelmente, mais útil que diversos outros mergulhados em outras circunstâncias e interesses mais distantes que os expressos em A Rebelião das Massas, O Homem e a Gente e outros textos. A filosofia que ele receitou - mas principalmente o espírito aventureiro de seu filosofar - como remédio para o “problema Espanha”, a tenacidade de seu trabalho de pedagogo social, seu exemplar esforço por salvar uma Espanha empobrecida em todos os aspectos, o magnetismo aglutinador que exerceu sobre os intelectuais espanhóis de sua época em torno da tarefa de salvar sua circunstância (fracassada, logo adiante, com a ditadura franquista), ainda podem servir de inspiração para um país que, no século XXI, passa por muitos dos problemas da Espanha das três primeiras décadas do século passado.

Influência

Ortega morreu em 1955. Desde então, sua influência foi declinando, inclusive em seu país (também ele voltado para os centros de maior prestígio). Em 1983, no entanto, por ocasião do seu centenário, uma série de atividades, entre elas o lançamento da nova edição das Obras Completas, organizadas por seu discípulo Paulino Garagorri, deu novo fôlego aos estudos orteguianos. Em 2005, no cinqüentenário da morte de Ortega y Gasset, comemorado num seminário de quatro dias em outubro, na Universidad Complutense de Madrid e Fundación Ortega y Gasset (FOG), alguns temas de Ortega voltaram à pauta rendendo diversas matérias em jornais, quase nenhuma no Brasil - interessante é observar como a nova edição das Obras Completas vem sendo conduzida por estudiosos cuja idade é, em média, de menos de 35 anos. São os mesmos que, principalmente da Espanha, mas também da Argentina e outros países, contribuem com a Revista de Estudios Orteguianos, editada pela FOG, animados pela convicção da atualidade do pensamento de Ortega.
Entre os temas mais atuais, sem dúvida está seu diagnóstico da sociedade de massas. Vivo – e certamente ainda mais hoje do que na época em que foi escrito – o homem-massa, personagem filosófico que o espanhol delimitou nos anos 30, segue de grande atualidade. “Vivemos sob o brutal império das massas!” – bradava Ortega, naquela época. O eco, à força de diversos acontecimentos, fica cada vez mais forte à medida que passam os anos.

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