sábado, 8 de agosto de 2009

Marina, 19

Como um isqueiro acendendo velas numa mesa de jantar, meus dedos trêmulos pela traição incendiaram a pontinha do seio direito e correram, logo depois, para o outro, que já estava aceso. A lã grossa e macia da blusa apertada me fazia cócegas. Parecia uma mão peluda sobre a minha. Uma caranguejeira! Não sei por que uma idéia dessas, mas confesso que me veio à cabeça - e que hora para pensar naquilo! - a imagem de uma aranha peluda e negra das que tinham no pátio de minha casa, na distante infância, mexendo-se agora sobre a minha pele. Mas não tive medo.
Na luta com minha imaginação, ainda pude roçar umidamente o mamilo duro e de vez em quando beliscá-lo de leve - mas com alguma firmeza - como a boca de um passarinho mordiscando a presa deliciosa.
O problema é que eu não conseguia ver a cor, dali de onde estava, olhando para os olhos de Marina, a língua dentro da boca, a mão dentro da blusa, alisando o balãozinho macio e resistente com uma pontinha. A cor é o que menos importa, poderiam me dizer, num momento em que tudo, ou quase tudo, está escuro em volta, e só alguns faróis iluminam a noite, de vez em quando. Mas para mim, não. É determinante. Ou quase.
É que gosto de ver, com calma e bem de perto, as elevações, as pequenas depressões e curvas, os degradês e as pinceladas que a natureza dá no corpo de uma menina dessas, espalhando, muitas vezes com perfeição, aquela espécie de bege interrompido pelas marcas de biquinis, elásticos de calcinhas, risquinhos. Até as imperfeições! As raras imperfeições. Queria dizer que não tenho nenhum problema com elas. Pelo contrário, assumo que muitas decididamente me comovem. Viva as dobrinhas e protuberâncias! As falhas! As bolinhas (uma que outra, é claro)! Viva tudo o que aflora do corpo de uma mulherzinha. Aceito-a toda.
O que importa é que, dali, não dava para vê-las. E isso, confesso, me aborrecia um pouco. Não muito.
- Hum... - acredite: a voz sussurrada umedeceu com seu vapor minha orelha fria. E o pampa a nossos pés.
- Marina... - respondi dentro da boca, caverna aberta em que, sinceramente, já estava perdido, desde a saída de Porto Alegre. Minto: depois que o ônibus parou em Pantano Grande, para a janta. Voltamos para nossos lugares e ouvi seus olhos me chamando no silêncio escuro. Eu já sabia o que ia acontecer. E foi sem uma palavra. Rostos muito próximos, olhos enfiados um no outro, as bocas fizeram o que não foi preciso dizer. Fizeram, apenas fizeram, em toda a simplicidade abrangente do fazer, coisa que é impossível para a mais poderosa das palavras. A verdade é que a boca, mesmo, não fala, e as palavras não beijam. Senti o gostinho de chiclete e não consegui mais voltar. O ônibus ia a toda para Buenos Aires, mas era Marina que me levava embora. Aí é que tá o problema. Uma viagem inteira ainda pela frente e aquela boca que não se fechava nunca. Ela disse em portunhol:
- No consigo dormir en omnibus.
Então beijos e mais beijos a noite toda, um movimento já mecânico, mesmo assim o gosto se renovava a cada vez. Ou melhor: melhorava. A boca afundava na boca e os dois no assento do ônibus, a mão aprofundava a exploração barriguinha abaixo, sob o cobertor - que faz frio no pampa, ainda mais o argentino - aprofundava-se como uma perigosa coral se arrastando cheia de curvas pelo corpinho, até a calça de brim. Mão de mágico, dedos que sabem o que estão fazendo - sem querer me gabar - eles estouraram sem som o botão da calça. Marina buscou o ar como quem chega à superfície, esperneando do fundo da água de uma sanga.
Mas a maldita memória a todo o momento dispersando-me. Eu que não queria me lembrar de nada, descia o centro de Porto Alegre até a rodoviária. Será que não tinha esquecido alguma coisa? As mãos como duas toupeiras entrando pelos bolsos das calças, do casaco, da camisa, de novo, estava tudo ali, as passagens, e agora sob o céu preto do pampa a mão esquerda metida na calcinha de algodão, o dedo, um gaúcho sedento bebendo a água fresquinha com a boca direto na greta de pedra. - Isso é olho dágua - meu pai ensinava, mas não queria me lembrar daquilo. Não queria.
Eu entrei no ônibus e notei, de cara, que não estaria sozinho na viagem. Vi, no suporte onde se colocam garrafas de água mineral e salgadinhos etc, uma garrafinha. No banco, tinha uma almofada amassada, vestígios de ocupação humana. Mas quem? O ônibus já estava para sair, o que evidentemente aumentava uma natural ansiedade que tenho. A fila de homens, mulheres e crianças se espremia no corredor estreito procurando os números dos assentos. Não vou omitir que cada um que passava por mim era como o número em uma roleta rodando, rodando, rodando, primeiro vertiginosa, depois mais lentamente, e mais, e mais. Tec. Tec. Tec. Tec. Azar ou sorte? Azar ou sorte? O velho gordo? O menino espinhento? A senhora com sacolas? O homem de bigode? A moreninha de cabelos castanhos?
Quando ela sentou ao meu lado sem me olhar, sorri para mim mesmo e virei o rosto para o velho disco-voador que é a rodoviária estacionada à beira do Guaíba, tentando esconder o contentamento de quem tirou a sorte grande. Tive a ilusão de que o mundo se mexeu lá fora e de que nós é que não saíamos do lugar.

2 comentários:

Cinara disse...

Amo este teu conto!!!
bjs querido

Clara disse...

Pôxa Jeferson....
Lembrei de uma aventura destas, aí no sul "ages ago"!
Saudade de um tempo que não volta.
Obrigada,

Beijos